domingo, junho 29, 2008


"É extraordinário o quão extraordinário a pessoa comum é." - George F. Will

Obrigada
Ensinaram-nos desde tenra idade (mesmo sem ainda saber escrever…) a fazer uma carta par a pedir presentes ao Pai Natal, antes da noite da consoada. Quando passamos a fase dos pedidos materiais, habituamo-nos a formular desejos sentimentais nesta época do ano, a uma qualquer entidade superior: seja ao velhinho das barbas brancas, aos três Reis Magos ou ao Menino Jesus, o importante é saber pedir; afinal pedir ainda não paga imposto e nós achamos sempre que merecemos, basta olhar para o lado... o outro está sempre melhor do que nós!

Prefiro ser e fazer diferente. Nestes dias que antecedem o início de um novo ano, em altura de balanço – não apenas do ano que passou mas de todos desde 1983 – escrevo a minha carta a um Pai, que não é natal... Em vez de pedir o que quer que seja, para mim ou para os outros , agradeço-lhe o que foi e o que não foi, o que é e o que não é, o que há-de ser e o que não há-de acontecer, na certeza de que estou em boas mãos.

Obrigada por me dares a sensibilidade de sentir o frio e o calor, de tocar e ser tocada. Obrigada por ter de limpar os óculos e o aparelho auditivo todos os dias, mas conseguir ver e ouvir o que quero e até o que não quero. Obrigada por cada parte deste que é o corpo que me foi dado e pelas dores físicas das mazelas de fracturas antigas que me assolam nas mudanças de clima, mas que me ensinam a ser mais paciente e lembram-me quem sou. Obrigada por não ter de renovar o guarda-roupa a cada estação, por que nada deixa de me servir e por nunca ter a sola dos sapatos gasta. Obrigada por todas as vezes que olhei para o espelho e não gostei do que vi. Por me levantares todas as manhãs da cama para ir trabalhar mesmo a queixar-me do sono; pelo meu quarto em vez do hospital, pela cadeira de rodas em vez de uma cama permanente. Obrigada pelas dúvidas e pelos anseios relativamente ao futuro que me fazem viver o presente de uma forma mais intensa; pelos instantes de inspiração que me acordam durante a noite para escrever; pelas lágrimas da saudade e da nostalgia de um passado que foi plenamente vivido... Obrigada por não colocares no meu caminho apenas uma pessoa que me ame, mas muitas, que são agora o meu suporte existencial e com quem partilho este Amor que me enche o peito. Obrigada pelas discussões com o Pai e a Mãe sempre que saio à noite e chego mais tarde a casa. Obrigada pelos "nãos" que um dia hei-de entender… Pelo telemóvel a tocar mesmo quando não quero que me chateiem e obrigada pelas vezes em que, ao colo de alguém ia caindo e não cheguei a tocar no chão graças à tua mão invisível. Obrigada por todos os momentos em que mesmo sem saber porquê segui o meu coração em vez da cabeça e pela perseverança na espera de que as circunstâncias mudem. Obrigada pela sopa que resmungo para comer (como qualquer Mafalda que se preze) mas que existe sempre na minha mesa. Pelas tensões pré-menstruais e pela irritação feminina inerente. Por cada corte de luz que me obrigou a rescrever textos que não estavam como eu queria; por cada vez que arrisquei e pelo calafrio no estômago sempre que me desafiei; pelas palavras que continuas a colocar na ponta dos meus lábios e dos meus dedos para comunicar contigo e com o mundo. Obrigada por levantares a minha cabeça para o céu para me fazeres reparar na beleza de uma lua cheia. E pelas frustrações e impotência que se transformaram em vontade de ir mais além. Pelos raros momentos de silêncio com que me inundas e me aproximam de ti. E por me dares a capacidade de te pedir para me ajudares a saber agradecer-te sempre tudo isto, porque ao meu lado, infelizmente, existirá sempre alguém numa situação pior do que a minha...

in “mafaldisses” crónicas sobre rodas… - Mafalda Ribeiro, papiro editora

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